Então, no terceiro dia, depois de matar o nono desgramento, tomei a decisão de abrir a caixa novamente dentro do banheiro lacrado para ter acesso ao fundo de tudo, que não era possível ver olhando de cima, pelo plástico.
O que encontrei baixou um pouco meu astral: dezenas de abelhas mortas, muito lixo acumulado e larvas, diversas larvas andando pela madeira, se enroscando em pedaços de cera e subindo pelas paredes. Sem falar de alguns casulos (as pupas, onde acontece a transformação de larva para ser voador) e forídeos adultos voando ali pelo meio. Desanimador. Descobri que não tinha conseguido limpar tudo na transferência, talvez tivessem sobrado ovos e larvas escondidos entre as camadas do ninho, onde não mexi muito para não estragar. A infestação continuava em andamento e a colônia ainda precisava da minha ajuda intensiva.
Virei o módulo inferior da caixa de cabeça para baixo, jogando fora todo aquele lixo e raspei a madeira com uma colherinha, catando todas as larvas que pude ver. Fiz realmente uma boa busca, e posso dizer que naquele módulo de madeira não sobrou nenhuma.
Enquanto isso as abelhas, agora sim estressadas, voavam por todo o banheiro, fazendo um zum zum zum forte que não tinha acontecido ainda. Segurei firme minhas próprias rédeas, me forçando a ficar calma e domando uma irritação que teimava em vir, porque eu era a única ali que podia fazer alguma coisa. Estava sozinha, eu com meus instintos e ferramentas, e tinha que encerrar aquilo da melhor maneira possível. Para elas.
Nessas horas, pensar em que já passou por perrengue maior que o seu dá uma certa força e a sensação de que a coisa até que não está tão ruim. Um médico, exausto durante uma cirurgia complicada, deve se sentir muito pior, pensei. Tamara Klink, dentro de uma tempestade, certamente passou mais dificuldades. E no meio do oceano a abelha morta seria ela mesma, caso a calma não a ajudasse a pensar.
Então remontei as metades de cima e de baixo da caixa, recoloquei as vedações de fita crepe e comecei a pegar as abelha, uma a uma nas pontas dos dedos, dessa vez contando. Mais uma vez o trabalho parecia infinito, mas por volta da número cinquenta e poucos fui enxergando o final daquilo. Terminei mesmo na sessenta e dois, e pelo silêncio dentro do banheiro tive certeza de que tinha pego todas de volta.
Passei mais três dias com elas fechadas na caixa, só observando pelo plástico, e fiz a mesma limpeza uma vez por dia, abrindo tudo, deixando todas voarem pelo Laboratório, recolhendo todo mundo de volta e notando que a cada dia tudo parecia melhor e mais fácil. Menos abelhas mortas, menos larvas vivas, nenhum forídeo voando, e então chegamos ao quinto dia desde a transferência, tempo limite para mantê-las presas sem ir a campo.
Pedi "asilo" no sítio de uma amiga, bem perto do meu, para que elas recomeçassem a vida num novo ambiente, sem a presença de saqueadores que ainda procuravam por elas aqui nas minhas instalações. Fiz a abertura da caixa numa manhã gostosa de sol morno, ainda bem baixo, desenhando sombras longas ao pé das árvores, e fiquei junto, porque há mais de dez dias nossas vidas estavam assim, correndo lado a lado.
Nos primeiro minutos não saiu ninguém, e tive a impressão de que elas tinham até se esquecido de como era sair de casa pela porta principal, de onde se voava para frente e não para cima, de onde se vê o verde da grama e da copa das árvores, ao invés do teto e da lâmpada de um banheiro. Mas então veio uma, que chegou na beiradinha do furo e parou, titubeante. E depois veio outra, que parou ao lado dela, pensando junto. E então as duas saíram ao mesmo tempo, puxando um cordão de outras abelhas como um colar de contas, espaçadas por intervalos de pensar e observar antes de alçar voo livre outra vez. Foi bonito demais!
Meu trabalho ainda não acabou. Faço visitas diárias para observar se estão agindo normalmente, voltando do campo com pólen e resina nas perninhas, construindo as estruturas de batume do interior da caixa e formando novos depósitos de mel. Levo meus apetrechos para o sítio onde estão e passo horas trabalhando ao lado delas, acompanhando os progressos e vigiando visitas suspeitas. Forídeos estão por aí, em todos os lugares, à espreita de uma colônia fraca que não consiga se defender. Têm faro apurado e são capazes de perceber de longe o odor de um pouco de pólen fermentado, mal cuidado, pedindo para ser atacado.
Uns e outros já se aproximaram e tentaram invadir a caixa, mas descobri a tempo e consegui espantá-los, antes que se instalassem e começassem a botar ovos. Em alguns momentos me pego chateada, achando que vai começar tudo de novo e não vou conseguir fortalecer esse enxame. Em outros momentos sinto segurança de que estou fazendo o melhor possível e que é assim mesmo, difícil mas possível. É isso o que Cristiano já me disse várias vezes.
A esperança vai e vem, ao sabor dos voos, para cima e para baixo.
Resta seguir em frente, sem sofrer por antecipação e sem desistir. Sou como elas, mais uma abelha operária, a atual responsável pela segurança e saúde do enxame, e assim como todas as outras tenho que sair de casa de manhã pela portinha da frente, e mergulhar num voo livre e firme, com energia e segurança do que tem que ser feito.