sexta-feira, 19 de novembro de 2021


No primeiro dia de caixa nova e fechada no Laboratório, monitorando as meninas pelo plástico transparente, percebi um forídeo aparecer lá dentro e consegui matá-lo, espremendo o bicho entre o plástico e uma travessa de madeira. Algumas horas depois vi mais um, que voou para o fundo e escapou de mim. No dia seguinte outros quatro apareceram. Consegui fazer com que alguns voassem para fora da caixa, outros consegui matar, mas aquilo começou a me preocupar. Como eles apareciam cada vez mais ali dentro se nenhum conseguia entrar?

Então, no terceiro dia, depois de matar o nono desgramento, tomei a decisão de abrir a caixa novamente dentro do banheiro lacrado para ter acesso ao fundo de tudo, que não era possível ver olhando de cima, pelo plástico.

O que encontrei baixou um pouco meu astral: dezenas de abelhas mortas, muito lixo acumulado e larvas, diversas larvas andando pela madeira, se enroscando em pedaços de cera e subindo pelas paredes. Sem falar de alguns casulos (as pupas, onde acontece a transformação de larva para ser voador) e forídeos adultos voando ali pelo meio. Desanimador. Descobri que não tinha conseguido limpar tudo na transferência, talvez tivessem sobrado ovos e larvas escondidos entre as camadas do ninho, onde não mexi muito para não estragar. A infestação continuava em andamento e a colônia ainda precisava da minha ajuda intensiva.

Virei o módulo inferior da caixa de cabeça para baixo, jogando fora todo aquele lixo e raspei a madeira com uma colherinha, catando todas as larvas que pude ver. Fiz realmente uma boa busca, e posso dizer que naquele módulo de madeira não sobrou nenhuma.

Enquanto isso as abelhas, agora sim estressadas, voavam por todo o banheiro, fazendo um zum zum zum forte que não tinha acontecido ainda. Segurei firme minhas próprias rédeas, me forçando a ficar calma e domando uma irritação que teimava em vir, porque eu era a única ali que podia fazer alguma coisa. Estava sozinha, eu com meus instintos e ferramentas, e tinha que encerrar aquilo da melhor maneira possível. Para elas.

Nessas horas, pensar em que já passou por perrengue maior que o seu dá uma certa força e a sensação de que a coisa até que não está tão ruim. Um médico, exausto durante uma cirurgia complicada, deve se sentir muito pior, pensei. Tamara Klink, dentro de uma tempestade, certamente passou mais dificuldades. E no meio do oceano a abelha morta seria ela mesma, caso a calma não a ajudasse a pensar.

Então remontei as metades de cima e de baixo da caixa, recoloquei as vedações de fita crepe e comecei a pegar as abelha, uma a uma nas pontas dos dedos, dessa vez contando. Mais uma vez o trabalho parecia infinito, mas por volta da número cinquenta e poucos fui enxergando o final daquilo. Terminei mesmo na sessenta e dois, e pelo silêncio dentro do banheiro tive certeza de que tinha pego todas de volta.

Passei mais três dias com elas fechadas na caixa, só observando pelo plástico, e fiz a mesma limpeza uma vez por dia, abrindo tudo, deixando todas voarem pelo Laboratório, recolhendo todo mundo de volta e notando que a cada dia tudo parecia melhor e mais fácil. Menos abelhas mortas, menos larvas vivas, nenhum forídeo voando, e então chegamos ao quinto dia desde a transferência, tempo limite para mantê-las presas sem ir a campo.

Pedi "asilo" no sítio de uma amiga, bem perto do meu, para que elas recomeçassem a vida num novo ambiente, sem a presença de saqueadores que ainda procuravam por elas aqui nas minhas instalações. Fiz a abertura da caixa numa manhã gostosa de sol morno, ainda bem baixo, desenhando sombras longas ao pé das árvores, e fiquei junto, porque há mais de dez dias nossas vidas estavam assim, correndo lado a lado.

Nos primeiro minutos não saiu ninguém, e tive a impressão de que elas tinham até se esquecido de como era sair de casa pela porta principal, de onde se voava para frente e não para cima, de onde se vê o verde da grama e da copa das árvores, ao invés do teto e da lâmpada de um banheiro. Mas então veio uma, que chegou na beiradinha do furo e parou, titubeante. E depois veio outra, que parou ao lado dela, pensando junto. E então as duas saíram ao mesmo tempo, puxando um cordão de outras abelhas como um colar de contas, espaçadas por intervalos de pensar e observar antes de alçar voo livre outra vez. Foi bonito demais!

Meu trabalho ainda não acabou. Faço visitas diárias para observar se estão agindo normalmente, voltando do campo com pólen e resina nas perninhas, construindo as estruturas de batume do interior da caixa e formando novos depósitos de mel. Levo meus apetrechos para o sítio onde estão e passo horas trabalhando ao lado delas, acompanhando os progressos e vigiando visitas suspeitas. Forídeos estão por aí, em todos os lugares, à espreita de uma colônia fraca que não consiga se defender. Têm faro apurado e são capazes de perceber de longe o odor de um pouco de pólen fermentado, mal cuidado, pedindo para ser atacado.

Uns e outros já se aproximaram e tentaram invadir a caixa, mas descobri a tempo e consegui espantá-los, antes que se instalassem e começassem a botar ovos. Em alguns momentos me pego chateada, achando que vai começar tudo de novo e não vou conseguir fortalecer esse enxame. Em outros momentos sinto segurança de que estou fazendo o melhor possível e que é assim mesmo, difícil mas possível. É isso o que Cristiano já me disse várias vezes.

A esperança vai e vem, ao sabor dos voos, para cima e para baixo.

Resta seguir em frente, sem sofrer por antecipação e sem desistir. Sou como elas, mais uma abelha operária, a atual responsável pela segurança e saúde do enxame, e assim como todas as outras tenho que sair de casa de manhã pela portinha da frente, e mergulhar num voo livre e firme, com energia e segurança do que tem que ser feito.








domingo, 14 de novembro de 2021

A torre central da colônia de abelhas, o famoso "ninho", formado por discos de células hexagonais onde a abelha-rainha bota um ovo e dele nasce uma abelha.


Como sempre, na linha de largada de qualquer desafio é importante combinar com você mesmo o que deve ser feito. Repassei o plano de ação na cabeça, abri a tampa da caixa, tomei coragem e comecei, retirando o barro das beiradas para abrir acesso ao ninho, uma torre central. Me surpreendi com abelhas mais calmas do que imaginei, que mais andavam sobre o que eu mexia do que voavam querendo fugir. Fui trabalhando com calma e cuidado, seguindo meus instintos para fazer a coisa da melhor maneira possível. O mais importante de tudo é transferir os discos de cria, um em cima do outro, desmontando essa estrutura o menos possível. Além disso, a rainha, que fica andando por esse "andares" da maternidade, não pode ser machucada nem perdida. De jeito nenhum ela pode ficar para trás, esquecida na caixa antiga. Mas ela normalmente ajuda, porque corre para o centro do ninho, para se esconder, então a transferência cuidadosa de toda a torre central da colônia leva ela junto, sem maiores estragos. Outra facilidade é que muitas das abelhas jovens, que ainda nem voam, ficam sempre pertinho da rainha, então vão todas em bloco, nessa transferência.

Depois de ajeitar a "sede" dessa linda organização nas suas novas instalações, topei com o núcleo da bagunça: centenas de larvinhas brancas andavam pelo fundo da caixa antiga, em meio a uma gosma de mel escorrido e pólen fermentado. Em poucos dias, tudo dentro da colônia teria sido destruído por essa onda de saqueadores que vinha avançando, silenciosamente, de baixo para cima da caixa.

Continuei com os trabalhos de mudança, descartando as sujeiras e salvando materiais limpos e sadios, enquanto abelhas jovens andavam por toda a bancada, meio sem rumo, e abelhas adultas voavam pelo banheiro, pousando no teto e nas paredes. Eu já devia estar ali há mais de meia hora, trancada naquele cubículo de pouco mais de um metro quadrado, cada vez mais quente e abafado.

Foi fácil capturar quem só andava, mas foi quase infinito o trabalho de pegar, uma a uma, as que voavam fugindo de mim. No início usei a velha técnica do copo com a lâmina de plástico, encaçapando a abelha na parede e pegando ela ali, presa, que é muito mais fácil. Mas logo virei gente grande e passei a praticar a captura em voo, segurando quem voava no entorno da lâmpada e bem rentinho ao teto. Como podem ser rápidas as pinças naturais que temos nas mãos! Virei uma máquina de pegar, colocar na caixa e tampar, pegar, colocar na caixa e tampar, pegar, colocar na caixa e tampar. Dezenas, talvez uma centena de vezes. E se acontece de uma sair quando você coloca outra pra dentro? Lógico!

Uma hora depois telefonei para Sr. Miyagi, ainda ali fechada no Laboratório quente, pra contar que tinha acabado de realizar minha missão e que estava feliz por ter feito tudo sozinha. Eram boas as notícias e, agora sim, parecia que a coisa ia funcionar. Ouvi dele os parabéns, mas que ainda havia muito o que fazer: nos próximos três ou quatro dias a colônia deveria continuar bem fechada, trabalhando para reconstruir à sua maneira as instalações da nova morada, enquanto eu colocaria néctar e pólen para alimentá-la. Tudo muito aos poucos, sem exagero, para que nada fermentasse e não corrêssemos o risco de gerar um novo odor atrativo para forídeos. Trabalho de formiguinha. Ou melhor...


A meleca de mel e larvas no fundo da caixa, que fermentava e atraía cada vez mais 
forídeos pra dentro da caixa de criação



O ninho visto de cima, já com o módulo superior da caixa colocado



O plástico que cobre tudo, logo abaixo da tampa de madeira,
por onde a gente pode olhar sem que nenhuma abelha escape.
E o ninho coberto com uma lâmina de cera alveolada, pra garantir conforto térmico e
facilitar o trabalho das abelhas, que teriam que começar toda essa
proteção do zero, se eu não tivesse dado uma mãozinha.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021


A grande questão da invasão de forídeos passou a ser descobrir se eles já haviam se instalado na colmeia ou se todas aquelas sessões de sopro tinham conseguido evitar isso. A estratégia, então, foi fechar as abelhas dentro da caixa no final do dia, quando todas voltaram do campo para passar a noite em casa, levá-las para morar no banheiro, longe da "fonte" de forídeos da mata, e continuar soprando por mais um tempo. Assim, sem que mais nenhum invasor pudesse entrar, seria possível descobrir se eles já nasciam lá dentro.

E infelizmente essa foi nossa conclusão, depois de dois dias de mais invasores do que abelhas dentro da caixa. Eles não paravam de aparecer, eu não parava de matá-los com a raquete, e o banheiro já tinha bichos mortos por todo o chão, além de alguns espremidos nas paredes. Minha rotina já tinha virado de cabeça para baixo, tarefas de trabalho atrasadas começaram a se acumular, as abelhas certamente estavam estressadas, e o pior: agora era certo que o enxame estava realmente em risco. A cada hora que passava mais larvas nasciam, mais alimento das abelhas era comido e a rainha certamente iria perceber essa bagunça e parar de fazer a postura de ovos, o que decretaria o fim da colônia se não fosse revertido a tempo. Porque quando não nascem mais trabalhadores a população vai diminuindo conforme os mais velhos vão morrendo, e o fim se aproxima.

- Então agora você não pode demorar, Juliana. Quanto mais o tempo passa, pior fica, me disse o Cristiano. Você vai ter que fazer a transferência da colônia para uma caixa nova, levando toda a estrutura do ninho das abelhas o mais intacta possível, além de pedaços de cera e batume da caixa antiga para que elas possam construir as estruturas internas das novas instalações. E faça a inspeção de tudo com atenção, para não levar junto ovos, larvas nem forídeos adultos.

Chama desafio, isso, e de vez em quando eu gosto de encarar um deles!
Em poucas horas montei uma bancada cirúrgica em cima do vaso sanitário do banheiro, que naquele momento ganhou o nome de Laboratório, com L maiúsculo. Juntei apetrechos que eu já tinha e mais alguns que imaginei poder precisar:

- uma colher de sopa e uma espátula de pintura dobradas em 90 graus, para suspender o ninho apoiando por baixo
- formão, alicate e chave de fenda para soltar o batume duro das paredes da caixa
- lâminas de cera para ajudar nas novas construções
- potes vazios para guardar mel e pedaços de cera
- rolos de fita crepe larga e estreita
- papel higiênico
- canudinho de soprar forídeos
- copo transparente e lâmina de plástico rígido para pegar abelhas pousadas nas paredes
- uma nova caixa de madeira para a colônia, que por sorte eu já tinha
- um banquinho e um copo d'água para mim, porque não sabia por quanto tempo ficaria trancada no meu novo Laboratório

Avisei marido e o pessoal do sítio que ficaria ali fechada por um tempo, sem poder abrir a porta, mas que eles poderiam falar comigo se precisassem de alguma coisa. E que se eu começasse a demorar demais para sair, eu ficaria feliz se eles me perguntassem se eu estava viva, respirando, hidratada, precisando de comida ou de alguma ajuda.

Revisei minhas ferramentas, fechei a porta do Laboratório, olhei a caixa onde estavam as abelhas, a caixa nova para onde elas iriam e respirei fundo. Naquele momento lembrei da Tamara Klink, de 24 anos, que há poucos dias tinha chegado ao Recife depois de cruzar em solitário o oceano Atlântico, "trancada" num barco de 8 metros de comprimento.
Isso aqui vai ser bico, pensei.

Continua amanhã, no próximo post.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021


Estou há dias lidando com a invasão de forídeos numa colônia de abelhas Mandaçaia. É minha primeira vez convivendo com um problema tão sério, que em poucas semanas pode acabar com a vida de centenas de abelhas, e não imaginei que tomaria tanto do meu tempo e da minha preocupação.

Forídeos são pequenas moscas, parecidas com as mosquinhas das frutas, que invadem enxames  enfraquecidos de abelhas sem ferrão e se aproveitam da sua estrutura para se alimentar e se reproduzir. Os estoque de pólen feitos pelas abelhas para alimentar suas crias são saqueados pelos forídeos adultos, que neles colocam seus ovos. Pequenas larvas nascem alguns dias depois em meio a todo aquele alimento e se fartam comendo feito loucas, crescendo o mais rápido possível para tomar conta de tudo, tentando ser mais eficientes do que as abelhas em sua capacidade de se defender.

Mais ou menos o mesmo acontece com nosso organismo quando é atacado por um vírus da gripe. Começa uma guerra por sobrevivência, e quem for mais rápido, mais forte e tiver a melhor estratégia é quem acaba vencendo, se estabelecendo e assistindo o fim trágico do outro. Não há espaço para os dois.

Assim como a gente procura um médico quando se sente realmente mal, pedi ajuda ao Cristiano Menezes, entomólogo especializado em abelhas sem ferrão, com quem tenho ensaiado parcerias e projetos para o ano que vem na nossa escola de educação ambiental, a Escola Orgânica.

Cristiano tem tido uma paciência de monge budista, respondendo minhas dúvidas em áudios longos e detalhados. Desde o primeiro dia em que notei a presença de diversas mosquinhas tentando entrar na caixa e poucas abelhas na entrada para evitar a invasão, mando mensagens descrevendo o que vejo e ele responde dizendo o que devo fazer para evitar o avanço da tragédia. São diversas possibilidades, diversas opções de tratamento, há que se analisar com calma.

Certamente as avaliações e diagnósticos teriam sido muito mais rápidos e eficientes se ele tivesse vindo aqui tomar as providências pessoalmente enquanto eu só assistia, mas a agenda apertada dele me colocou pra observar, trabalhar sozinha e adquirir uma experiência que eu ainda não tinha. É assim com tudo na vida, não? Saber a teoria nos da uma falsa confiança que rapidamente é desbancada quando se põe a mão na massa.

No momento me sinto numa versão ecológica do filme Karatê Kid - A hora da verdade, quando Sr. Miyagi coloca Daniel San para envernizar centenas de metros da sua cerca de madeira, desenvolvendo um movimento específico das mãos que é fundamental para a prática da arte marcial.

Aqui no meu remake estou há três dias repetindo o mesmo ritual: tiro a caixa das abelhas de baixo das árvores, levo pra dentro do banheiro da escola e abro a tampa de cima, para soprar lá dentro com um canudinho flexível de plástico. O objetivo é espantar os forídeos de lá antes que eles se estabeleçam e comecem a colocar ovos. Não vejo muito do que está acontecendo dentro da caixa, que é toda cheia de cavernas de barro construídas pelas abelhas, mas vou enfiando o canudo pelos buraquinhos e soprando o máximo que consigo, durante minutos a fio. Quando já não sai mais nenhum fecho a caixa e, de raquete elétrica em punho, vou matando todos os morféticos  que ficam voando pelo teto do banheiro. Para quem gosta daqueles estalos de mosquitos eletrocutados, é a atividade perfeita!

Depois de matar todos muito bem matadinhos, volto a caixa para debaixo das árvores, para as abelhas seguirem com seu trabalho no campo. E algumas horas depois lá vou eu de novo, levar a caixa pro banheiro, soprar o canudinho, dar espetáculo de raquete elétrica... Isso tudo acontece quatro, cinco, seis vezes por dia, porque novos forídeos do ambiente entram na caixa, atraídos pelos feromônios dos que já estiveram lá dentro e pelo cheiro de pólen que sai dos depósitos invadidos.

A conferir, nos próximos dias, o resultado dessa batalha.